PLATÃO
1.
A atividade filosófica de
Platão preenche toda a primeira metade do século IV. Nasceu Platão em Atenas no
ano 427 e morreu aos
oitenta anos, em 347, sem que interrompesse até a morte sua
produção filosófica e seu
ensino na Academia, no
caminho de Eleusis, junto ao rio Censo, nos arredores atenienses.
Platão absorveu o discipulado socrático e o
levou à maturidade de uma metafísica que
em Sócrates não
existiu efetivamente. A investigação da verdade
mediante o diálogo
entrecortado de perguntas e respostas, que havia caracterizado a ação filosófica de
seu mestre, foi convertida por
Platão no método mesmo da filosofia — a dialética — e
no gênero
literário em que realizou sua obra — o diálogo —.
Como é bem sabido, a filosofia
platônica emerge da figura e
doutrina de Sócrates, nos
escritos juvenis, para pouco a pouco ir cobrando independência e converter-se
em um pensamento
autônomo; mas sempre, salvo nas Leis,
Platão conserva a presença de Sócrates em seus
diálogos, e o
faz porta-voz de sua própria filosofia.
2.
Platão, o inimigo da sofistica, que afirma os
direitos da verdade
frente a toda retórica,
levou no entanto o bem dizer a uma altura nunca alcançada nos sofistas. É,
seguramente, o primeiro prosista grego; porém, advirta-se que o supremo valor
literário de Platão reside em que não é apenas literatura, e que sob seus mitos
maravilhosos pulsa nada menos que toda uma metafísica. É
isto que confere sua surpreendente grandeza aos diálogos
platônicos, e não a simples destreza de escritor que, ademais, possui em grau
eminente. Platão possui um prodigioso dom da palavra;
soube encontrar os termos e as metáforas necessárias para
expressar um pensamento novo,
de incomparável riqueza e profundidade. Em suas mãos, a
língua grega adquire uma perfeição desconhecida, o que torna possível uma
enorme expansão das possibilidades filosóficas helênicas. Desde então, a metafísica
contará plenamente com o instrumento adequado para sua realização.
3.
IDEIAS.
Platão denominou as causas de natureza
não-física, as realidades inteligíveis,
principalmente recorrendo aos termos Ideia e Eidos, que
significam "forma".
As Ideias de
que falava Platão não são simples conceitos ou
representações puramente mentais (só muito mais tarde o termo assumiria esse
significado), mas representam "entidades", "substâncias".
As Ideias, em
suma, não são simples pensamentos, mas
aquilo que o pensamento pensa
quando liberto do sensível:
constituem o "verdadeiro ser", "o ser por excelência".
Em breve: as Ideias
platônicas são as essências das coisas, ou
seja, aquilo que faz com que cada coisa seja
aquilo que é. Platão usou também o termo "paradigma" para indicar que
as Ideias
representam o "modelo"
permanente de
cada coisa (como
cada coisa deve
ser).
4.
TEORIA
DA PARTICIPAÇÃO. A verdadeira realidade não está nas coisas;
estas são só por participação das ideias, e
estas, entes
metafísicos supra-sensíveis e
universais, são o verdadeiro ser, o ontos on. É a ideia,
pois, que faz com que as coisas sejam
o que são; o mundo que
temos ante os olhos, o mundo
visível, torna-se desqualificado, e se lhe opõe outro mundo, inteligível,
superior, composto pelas
ideias, onde
reside a verdadeira realidade. Pela primeira vez aparece na filosofia
grega, de um modo central e explícito, á doutrina dos dois mundos. As coisas
remetem às ideias, e há
uma referência constante de um ao outro.
5.
ANTROPOLOGIA
PLATÔNICA. Em primeiro lugar, Platão assume uma posição dualista, que retoma antecedentes pitagóricos evidentes: há alma e corpo, e
deve-se tratar de ambos separadamente, mas ao mesmo tempo de sua união no ente
humano. Por outro lado, o homem é uma
coisa, que
como as demais participa de uma ideia; mas
sua relação com o
mundo
destas não se esgota na mera dependência ontológica: o homem viu
as ideias, e só
isto lhe confere sua humanidade; há,
portanto, um modo superior e mais profundo de participação. Esta
vinculação do homem à
realidade ideal
explica a teoria platônica da alma e de
sua encarnação corpórea. E,
finalmente, a doutrina da imortalidade da alma e de
sua referência ao divino
procedem desta interpretação do ser humano a partir das ideias.
6.
A ALMA. Toda
alma é imortal.
Efetivamente, tudo o que se move eternamente é imortal, pois
o que é veículo de movimento ou o
que é movido de
fora, uma vez cessado o movimento deixa
de viver. Uma vez posto que o que se move a si
mesmo é imortal,
ninguém poderá deixar de reconhecer que precisamente é essa a essência da alma. Todo corpo movido de
fora é inanimado e tudo o que se move de
dentro, por si
mesmo é animado, de
maneira que é esta a natureza da alma.
Sendo que o que se move a si
mesmo é a alma, esta
necessariamente não tem princípio nem fim. A alma encontra-se tripartida e essa
tripartição configura a sociedade. ALMA RACIONAL – Parte racional da
alma: eu conheço o mundo e faço o bem – guardiões – filósofos – políticos;
OURO. ALMA IRASCÍVEL – leva a agir com insulto, coragem, guardiões –
guerreiros – OS GUARDAS – Defesa da Cidade; PRATA. ALMA APETITIVA – o
que busca o que é agradável, prazeroso: do corpo, do gosto e do trato –
COMERCIANTES, ARTESÃOS E PRODUTORES. Cuidar da subsistência da cidade; BRONZE.
7.
HIPERURÂNIO.
O conjunto das Ideias, com
as características acima mencionadas, passou à história sob a
denominação de "Hiperurânio", termo usado no Fedro, que
se tornou célebre, embora nem sempre entendido de forma
correta. O "lugar
hiperurânio" significa "lugar acima
do céu"
ou "acima do cosmos
físico" e, portanto, constitui representação mítica e imagem que,
entendida corretamente, indica um lugar que
não é absolutamente um lugar. Na verdade, as Ideias são
descritas como dotadas de características tais que impossibilitam qualquer relação com
um lugar
físico (não possuem figura nem
cor, são intangíveis etc). Logo, o Hiperurânio é a imagem do mundo
espacial do inteligível (do
ser suprafísico). Platão salienta com acuidade que o Hiperurânio e as Ideias que
nele existem "são captados apenas pela parte mais elevada da alma, isto
é, pela inteligência e
apenas pela inteligência."
Em suma: o Hiperurânio é a meta a que
conduz a "segunda navegação".
8.
ESTRUTURA DO MUNDO DAS IDEIAS. A distinção entre dois planos do ser, o sensível e o inteligível, superava definitivamente a antítese entre Heráclito e Parmênides. O fluir perene, com todas as características a
ele relativas, representa marca específica do ser sensível. Por outro lado, a imutabilidade e
tudo quanto ela implica é propriedade do ser inteligível. Entretanto, ainda ficavam à espera de
solução os dois grandes problemas que o eleatismo levantara e que os
pluralistas não souberam resolver: como podem existir os seres "múltiplos" e como pode
existir o "não-ser"?. O mundo das Ideias é um sistema hierarquicamente
organizado e ordenado, no
qual as Ideias inferiores implicam as superiores,
numa ascensão contínua até à Ideia que ocupa o vértice da hierarquia, Ideia que condiciona todas as outras e não é
condicionada por nenhuma delas (o incondicionado ou o absoluto).
9.
O UM (ou a unidade) não pode ser pensado de modo absoluto, ou seja, de maneira a excluir toda
multiplicidade: o um não existe sem os muitos como os muitos não existem sem o
um.
10.
MULTIPLICIDADE. Existe
o não-ser como "diversidade" ou "alteridade", coisa que os eleatas não compreenderam. Toda
Ideia, para ser a Ideia que efetivamente é, deve ser diferente
de todas as outras, ou seja, deve "não ser" todas as outras. Assim,
toda Ideia possui certa dose de ser mas, ao mesmo
tempo, um não-ser infinito no sentido de que, exatamente por ser a Ideia que é, deve não ser todas as outras.
Por fim, Parmênides é superado também pela admissão de um
"repouso" e de um "movimento" ideais no mundo inteligível: cada Ideia, de modo imóvel, é ela mesma mas é, dinamicamente, um
"movimento" ideal em direção às outras ou exclui a participação das outras.
11.
O BEM. O Um
sintetiza em si o Bem, pois tudo quanto o Um produz é bem (o bem é o aspecto funcional do Um,
como argutamente observou certo intérprete). Ao Um se contrapunha um segundo
princípio, igualmente originário mas de ordem inferior, entendido como princípio indeterminado e ilimitado e como princípio de multiplicidade.
Denominava-se tal princípio Díade ou Dualidade de grande-e-pequeno enquanto princípio
que tende, ao mesmo tempo, para a infinita grandeza e para a infinita pequenez, sendo por
isso denominado também de Dualidade indefinida (ou indeterminada, ilimitada).
12.
DIÁDE
(UNO-BEM). Da colaboração desses dois princípios originários é que procede a totalidade da Ideia. O Um age sobre a multiplicidade ilimitada como princípio limitante e
determinante, ou seja, como princípio formal (como princípio que dá enquanto
determina e delimita), ao passo que o princípio da multiplicidade ilimitada funciona como substrato (como matéria inteligível, se quisermos dizê-lo com terminologia
posterior). Consequentemente, assim como todas as outras, cada Ideia surge como resultado de uma "mistura" dos dois princípios (delimitação de um ilimitado). Além disso, o Um, enquanto de-limita, se manifesta como Bem, porquanto a delimitação do ilimitado, que se revela como uma forma de unidade na multiplicidade, é "essência", "ordem", perfeição e valor. Assim, o Um:
a) é princípio de ser (porquanto, como vimos, o ser, ou seja, a essência, a substância, a Ideia, nasce precisamente da delimitação do ilimitado); b) é princípio de verdade e cognoscibilidade, porquanto só
aquilo que é determinado é inteligível e cognoscível; c) é princípio de valor, porque a
delimitação implica, como vimos, ordem e perfeição, ou seja, positividade.
13.
A
"GERAÇÃO" DAS IDEIAS a partir dos princípios (Um e Díade) "não deve ser entendida como
processo de caráter temporal, mas como metáfora destinada a ilustrar uma análise de estrutura
ontológica. Tal metáfora objetiva tornar compreensível ao conhecimento, que se realiza de forma discursiva, a ordem do ser, que se realiza de modo
evolutivo e atemporal" (H. Kramer). Consequentemente, quando se diz que
foram geradas "antes" determinadas Ideias e "depois" outras Ideias, tal afirmação não pretende indicar a existência de uma sucessão cronológica, mas de
uma graduação hierárquica, isto é, de uma "anterioridade" e uma
"posterioridade" ontológicas. Nesse sentido, logo após os princípios surgem as Ideias mais gerais, como, por exemplo, as
cinco Ideias supremas mencionadas no diálogo O Sofista (Ser, Repouso, Movimento, Identidade, Diversidade) e
outras Ideias semelhantes a essas (por exemplo: Igualdade, Desigualdade, Semelhança,
Dessemelhança etc). Talvez Platão possa ter colocado no mesmo plano os assim
chamados Números Ideais ou Ideias-Números, que representam arquétipos ideais, que não devem ser confundidos
com os números matemáticos. Tais Ideias são hierarquicamente superiores às
restantes, porquanto estas últimas delas participam (e, por conseguinte, as
implicam) e não vice-versa (por exemplo, a Ideia de homem implica identidade e igualdade do homem consigo mesmo, diferença e desigualdade em relação às outras Ideias; entretanto nenhuma das Ideias supremas mencionadas implica a Ideia de homem). Análoga deve ser a relação das Ideias-números com as demais Ideias: Platão deve ter considerado algumas Ideias como monádicas, outras como diádicas,
outras ainda como triádicas e assim sucessivamente, quer porque relacionáveis
ao um, ao dois, ao três e assim por diante, quer em virtude de sua configuração interna, quer
ainda pelo tipo de relação que estabelecem com outras Ideias. Sobre esse ponto,
entretanto, nos achamos muito mal informados.
14.
A
"SEGUNDA NAVEGAÇÃO". leva ao reconhecimento da existência de dois
planos do ser: um, fenomênico e
visível; outro, invisível e meta-fenomênico,
captável apenas com a mente e, por conseguinte, puramente inteligível. Após
a "segunda navegação" platônica (e somente depois dela) é que se pode
falar de "material"
e "imaterial", "sensível"
e "supra-sensível",
"empírico" e "meta-empírico",
"físico" e "suprafísico". E é à luz
dessas categorias que
os físicos anteriores se revelam materialistas e que a natureza e o cosmos não
aparecem mais como a totalidade das coisas que
existem, mas apenas como a totalidade das coisas que
aparecem. O "verdadeiro ser" é constituído pela "realidade inteligível".
15.
ALEGORIA
DA CAVERNA. O livro VII da República
inicia-se com um dos textos mais célebres de Platão: a alegoria da caverna. Sócrates pede
a Glauco que imagine homens
presos numa caverna e de
costas para a entrada de onde vem a luz; por
trás brilha, ao longe, uma lareira acesa num ponto alto; entre esse
lume e os prisioneiros existe uma estrada alta e ao longo dessa estrada corre
um murinho. Imaginemos agora que homens vão
andando ao longo dessa estrada, levando objetos de todas as formas,
assim como figuras de homens e animais que
ultrapassam a altura do muro, uns falam, os outros seguem calados. Os
prisioneiros da caverna,
podendo apenas ver as sombras que se projetam no fundo da sua prisão,
tomam-nas pela realidade e atribuem-lhes palavras que
ouvem pronunciar. Esses prisioneiros são a nossa imagem: a prisão é o
nosso mundo
visível, as verdadeiras realidades constituem o mundo
inteligível e, no extremo desse mundo
inteligível, está a ideia do Bem que
só dificilmente se apreende mas que está na origem de toda a luz. Para
passar desse mundo
visível para esse mundo
inteligível, a nossa alma tem
de operar um movimento de conversão e de
regresso ao seu princípio. Mas a coisa é
difícil, pois os nossos olhos estão habituados à penumbra da nossa prisão e a
passagem da escuridão para a luz cega-nos;
por isso, se se libertar esses prisioneiros, a maioria tentará voltar para o
fundo da sua prisão e
amaldiçoará aqueles que os quiseram libertar.
16.
A
DIALÉTICA. A dialética trata
da geração no sentido da essência (genesis
eis ousian, Fil., 26 d, cf. Pol., 283 d). Platão fala de uma geração no sentido da essência
porque qualquer geração tem
por fim a ideia, a essência, ou
seja, o Bem; na
base de qualquer devir está uma finalidade que a
dialética tem a
responsabilidade de descobrir. Esta dialética
compreende dois
momentos (cf. Rep., VI,
511 b, e Fedro, 265
d): a) Uma dialética
ascendente (synagoge) que se eleva de ideia em ideia até
ao não hipotético, até à Ideia de
todas as ideias, ou
seja, o Bem, que
ultrapassa em majestade e em poder a própria essência e que
se mantém portanto para além dela (epekeina
tes ousias presbeia kai dynamei Rep., VI,
509 &). A dialética
ascendente vai portanto do múltiplo ao uno, de modo a descobrir o princípio de
cada coisa, e
depois o princípio dos princípios; é
ela que Sócrates usa
nos diálogos
morais. b) Uma dialética
descendente (diairesis)
que procura desenvolver, através do poder da razão, as diferentes
consequências desse princípio não hipotético sobre o qual tudo repousa, e
reconstruir deste modo a série das ideias sem
recorrer à experiência.
Platão compara desta maneira o dialético com um cortador de talho capaz de
dissecar um corpo pelas
suas articulações naturais (Fedro,
265 e). A dialética
descendente é aquela que podemos encontrar aplicada na República e no Timeu.
17.
CONHECIMENTO: REMINISCÊNCIA. A investigação é
impossível se se ignora o que se pesquisa, como se torna inútil se se a conhece (Ménon,
80. d). É preciso, pois, que o interlocutor tenha já o espírito
orientado para a realidade, que tenha conhecido essa realidade e que a
investigação e o conhecimento não
sejam senão uma "reminiscência"
(81 d). Se o espírito, por
simples reflexão (orientada ou não pelas perguntas do mestre) pôde descobrir verdades, é
que ele as possuía em si
mesmo; através da simples reflexão, o escravo interrogado por Sócrates
descobre que o dobro do quadrado de um outro está construído sobre a diagonal
(82 b- 85 b). Ora, descobrir uma verdade de
que se tem posse é
relembrá-la. A teoria da reminiscência nunca
é teoria inativa, mas teoria estimulante. Graças a ela," devemos ter valor
constante e esforçar-nos por investigar e reencontrar a memória do
que perdemos de lembrança"
(81 de - 86 b). Tornamo-nos, assim, "melhores, mais enérgicos, menos
indolentes". A reminiscência é a
primeira condição da autonomia do espírito de
investigação.
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